Salomão Seruya
Memórias
O que vos escrevo não é para ser publicado. Trata-se apenas de notas e recordações do que vi, do que passei e de pessoas que conheci durante a minha vida.
A ordem cronológica será inteiramente desprezada; haverá também muitos erros e lapsos, pois a memória, que muitos me gabam, é altamente fictícia e a verdade é que ela me falha constantemente, levando-me a confundir nomes e factos; no que diz respeito a datas e lugares, então, o desastre é completo. Mesmo assim e com todas as suas lacunas, inexatidões e defeitos, talvez estas notas possam interessar e aproveitar a meus filhos a quem se destinam.
Nasci em 16 de Janeiro de 1876 na residência de meus avós maternos numa das casas do grande bloco de edifícios da Rua Vitorino Damásio em Lisboa.
Foram meus pais Mark Seruya, nascido em Lisboa em Lisboa em 27 de Junho de 1848 e falecido também em Lisboa em 21 de Setembro de 1914, e Esther Abecassis, nascida em S. Miguel (Açores) em 13 de Fevereiro de 1851 e falecida em Lisboa em 17 de Agosto de 1939.
Não vai além dos meus avós o conhecimento da minha família. Quando nasci já era falecido o meu avô paterno Salomão Seruya, natural de Gibraltar onde nasceu em 18 de Novembro de 1804. Vivia e dela me recordo perfeitamente minha avó Lice Atemesquin Mór-José Seruya.
Partida para África, Moçambique
Tinha vinte e dois anos completos quando, após cinco anos de aprendizagem na casa bancária e comercial Mark, Weinstein e C.ia, parti de Lisboa no vapor Konig, da Deutsch Ost Africa Linie, no dia 12 de Agosto de 1898. O navio era comandado pelo Capitão Doher, talvez o mais conhecido e popular entre os viajantes portugueses e outros da carreira Hamburgo – África Oriental. Nesse tempo o meu conhecimento do alemão era ainda bastante razoável e, para orientação dos meus compatriotas a quem possa suceder o mesmo, direi que me sentavam à mesa com mais três portugueses, um juiz que ia para o Ibo, um outro de quem não guardo a mais pequena recordação e um simpático oficial da marinha que ia assumir o comando do navio Afonso de Albuquerque, creio eu, que estacionava em Moçambique.
Os dois primeiros usavam e abusavam de mim como intérprete e, como acontece a muita gente de modesta condição, como observei pelos anos fora, achavam que tudo era mau a bordo, o serviço dos camarotes como o de mesa. Eram constantes as reclamações que eu era obrigado a traduzir, os dois cavalheiros não paravam de dizer mal do vapor convictos de que o português não era entendido. Ora justamente a mesa do capitão era perto da nossa e a ela se sentava um alemão que falava o português tão bem como nós e ia repetindo aos oficiais tudo quanto ouvia. Só muito mais tarde o soubemos porque o próprio alemão nos fez sentir a inconveniência: dela eram culpados somente os tais dois portugueses porque eu era a primeira vez que viajava num bom vapor e achava tudo bom, menos a companhia de que me via rodeado e vítima e o oficial de marinha era demasiado fino para fazer coro com os outros. Entretanto ele e eu sofremos a antipatia de que nos sentíamos objeto por parte do pessoal de mar e da oficialidade.
Quando chegámos a Moçambique e o nosso oficial apareceu no tombadilho de grande uniforme e se abeirou do vapor o escaler do Afonso de Albuquerque que o vinha buscar, tive a nítida sensação de que a oficialidade do Konig se sentiu comprometida por não ter percebido que o passageiro era marinheiro de alta patente e não o ter tratado como tal durante a viagem. E tudo isso era consequência da irritabilidade dos nossos outros dois companheiros de mesa.
Viajava também um médico inglês, rapaz novo e extremamente simpático, mas um incorrigível borracho. Levantava-se cedo para entrar no bar logo que abrisse e daí para diante eram raras as horas em que estava razoavelmente aceitável. Foi a pessoa com quem posso dizer tive as minhas primeiras lições de inglês. Fomos a terra juntos em Zanzibar. Quando regressávamos a bordo, passámos por um edifício onde havia uma sentinela indígena. O meu borracho inglês lembrou-se de lhe dar uma bofetada, o soldado deu o alarme, apareceram outros e o médico e eu largámos a correr para a praia. Como corríamos mais depressa, tivemos tempo para saltar para o escaler do vapor, que largou imediatamente e assim escapámos a um vexame bem desagradável. Não ganhei para o susto.
Em Lourenço Marques
Em casa de Leão e Benjamim Cohen
Cheguei a Lourenço Marques cerca do dia 12 de Setembro, hospedando.me em casa dos meus queridos e saudosos amigos Leão e Benjamim Cohen. O Benjamim estava nessa ocasião na Europa, e pouco antes da minha partida, almoçando ele em casa de meus pais, eu disse-lhe do meu projeto de ir para o Transval. Fez-me umas perguntas em inglês, a que eu respondi mal e aconselhou-me a que não fosse sem conhecer bem a língua. Refleti que sabia o português, o francês e o alemão e entendia um pouco de italiano e espanhol; o inglês não podia realmente ser uma dificuldade insuperável. Fui e não me arrependi: diverti muita gente com múltiplas asneiras, dormi algumas vezes no teatro, mas acabei por aprender a língua, assim como tantos outros.
Leão Cohen foi um anfitrião encantador e a sua simpatia e amabilidade para comigo nunca esmoreceram através dos muitos anos em que convivemos em África, em Londres e até ao seu falecimento em Lisboa. O mesmo digo do Benjamim e a grata memória que conservo destes dois queridos amigos só comigo próprio acabará.
A sua casa era, sem dúvida, a mais confortável e alegre da cidade e lá era recebido tudo quanto de distinto, estrangeiros ou portugueses, por lá passava. Comia-se, ai que bem que lá comia! E tanto ao jantar, como depois.
Guerra Anglo-Boer
No seu 12375 de 21 de Maio de 1900, o Diário de Notícias publicou a primeira parte da minha carta, de Johannesburg, de 23 de Março e, a seguir, a seguinte nota:
“Destruição das minas. Dizem algumas folhas estrangeiras que o Raad, de Pretória, reunido em sessão secreta, teve uma viva discussão sobre a oportunidade de destruir as minas e os principais edifícios de Johannesburg, ao aproximarem-se as forças britânicas. O resultado da discussão não é conhecido, mas os representantes das minas estrangeiras não estão tranquilos e dirigem representações pedidndo a intervenção dos cônsules respetivos. Os “burghers” influentes opõem-se a violências daquele género, mas o jornal Volkstem recomenda a destruição.”
Seguidamente, no seu nº 12380 de 26 de Maio de 1900, o Diário publica o seguinte telegrama de Londres:
“Segundo uma entrevista com os sobrinhos de Kruger, estes julgam que as minas de ouro serão destruídas e os bóeres resistirão em Lydenburg, onde há provisões acumuladas para três anos. Kruger desaparecerá antes de ser aprisionado pelos ingleses.”
Ora, a este propósito, ocorre-me relatar que, nas alturas de Maio de 1900 quando o exército do Marechal Lord Roberts se aproximava de Johannesburg e os “comandos” do General Louis Botha se achavam concentrados em redor da cidade, fui, como era meu costume, passar o fim de semana em casa do meu chefe e saudoso amigo, o Senhor Comandante Demetrio Cinatti, encarregado de negócios e cônsul geral de Portugal junto da República Sul Africana. Na trade de domingo, assisti, com sua filha Celeste Cinatti, a um chá em casa do Secretário de Estado, Dr. Reitz. Em dado momento encontrei-me numa pequena sala, com a esposa do Secretário de Estado, a esposa do General Botha e a menina Cinatti. Ao centro, havia uma mesa em que estava um mapa das operações e a senhora de Botha, bastante excitada, mostrou-nos a posição dos exércitos inglês e bóer e a direção que seu marido tomaria ao retirar dos arredores de Johannesburg. Acrescentou, e categoricamente, que, antes de se afastar, o General Botha passaria pela região de Johannesburg e destruiria as minas. Isto, dito por uma pessoa com tais responsabilidades, posto que não me convencesse inteiramente, impressionou-me e, logo que, na manhã seguinte, regressei a Johannesburg, procurei o senhor Levy (antigo leiloeiro, bem conhecido pela alcunha de Nababo Levy, devido à sua publicidade, em que se apresentava vestido de rajá indiano) um dos raros ingleses que o governo sul-africano tinha autorizado a permanecer no país, como encarregado da conservação das minas do grupo Barnato. Disse-lhe o que ouvira; respondeu que duvidava que o General Botha tal fizesse, mas que, fosse como fosse, ele Levy nada podia fazer por lhe ser impossível comunicar com as forças inglesas ou com os seus constituintes, quer por carta, quer por telegrama.
Dias depois, o General Botha retirava com as suas forças e, quer tenha recebido ordens de destruir as minas, quer não, o fato é que, como é sabido, teve o patriótico bom senso de não cometer tal vandalismo.
O Consulado de Johannesburg
Ao iniciar o relato da minha atuação como agente consular em Johannesburg e também porque já escrevi umas notas acerca da minha gerência do Consulado de Itália, acho conveniente fazer as seguintes observações.
A primitiva agência consular e, anos depois, o Vice-Consulado, cuja gerência me foi confiada sem que eu pertencesse à carreira consular, tiveram logo um movimento superior ao dos consulados portugueses, de carreira, em Pretória, Durban e Capetown e, por isso mesmo, a sua projeção era grande, mormente quando tal movimento derivava da proximidade de Moçambique e se conjugava com a representação do porto e caminho de ferro de Lourenço Marques, igualmente a meu cargo.
A importância do consulado em Johannesburg
Isto e decerto que não os meus méritos, fazia com que o público não fizesse distinção entre o Vice-Consulado de Portugal e os demais postos de carreira de outros países, cujos titulares, tais como os de França, Estados Unidos, Alemanha, Itália e outros, me tratavam exatamente como se eu da carreira fosse. Tal situação, de que eu não era culpado, foi um dos atritos que provocaram desinteligências com o Cônsul Geral Valdez, que se irritava ao ver que, com frequência, eu era designado, na imprensa, como Cônsul e não Vice-Consul honorário. Não refletia o Sr. Valdez que a imprensa pouco se preocupava com tais distinções e que ele próprio, assim como os Cônsules Gerais de outros países como a França e a Bélgica, por exemplo, eram frequentemente citados apenas como cônsules.
E essa situação criou a curiosa circunstância de os consulados de carreira recorrerem em várias ocasiões, ao Vice-Consulado de Portugal, de preferência aos outros de carreira.
Com o cônsul dos EUA
O Cônsul dos Estados Unidos procurava-me regularmente para ajuramentar perante mim os seus mapas de contabilidade; era, de fato, norma daquele país obrigar os seus agentes consulares a apresentar as suas contas ajuramentadas perante um funcionário consular estrangeiro. Formalidade que nunca compreendi, mas era assim mesmo.
Com o cônsul da Turquia
Um cônsul geral da Turquia recorreu a mim, quando da eclosão da primeira guerra mundial, para eu pedir o seu passaporte ao Alto Comissário Britânico na União Sul Africana. Fiz o pedido e a resposta foi que a concessão do passaporte tinha de esperar até se saber como o governo da Turquia procedia com os cônsules britânicos nos seus territórios. Não houve tempo para resolver o caso porque o malogrado cônsul faleceu repentinamente pouco depois e fui eu, também, quem, a pedido da viúva e de um seu nacional, participei o fato ao Governo da União e ao Governo Turco, por telegrama de cujo destino nunca tive conhecimento. Soube apenas, tempos depois, que a viúva tinha regressado ao seu país.
Com o cônsul da Grécia
Um cônsul da Grécia pediu-me, um dia, para minha mulher fazer parte de uma comissão de senhoras que ele ia organizar para a realização de uma festa em benefício dos combatentes gregos, visto ter recebido uma carta pessoal da sua soberana com um pedido nesse sentido. A festa realizou-se, de facto, no teatro de variedades Empire e rendeu uma boa quantia, mas, infelizmente, surgiram dificuldades inesperadas na remessa do dinheiro a Sua Majestade a Rainha da Grécia.
O consulado de Itália
Finalmente, quando um cônsul de Itália saiu de Johannesburg em gozo de licença e se tratou da interinidade da gerência do seu consulado, de carreira, fui eu o convidado para o exercer.
Escrito em Abril de 1956