Gerência do Consulado de Itália

Gerência do Consulado de Itália

e alguns italianos com quem convivi

em Johannesburg e em Lisboa

 

Condecoração concedida pelo Governo italiano em homenagem aos serviços prestados na gerência do consulado de Itália durante a Iª Grande Guerra.

 

Gerência do Consulado de Itália

 

Em princípios de 1913 fui procurado pelo meu bom amigo Francesco Medici di Marignano que me anunciou a sua próxima partida em gozo de licença e me pediu para assumir a gerência do seu Consulado.

 

Pedia-mo pelo facto de haver um problema difícil de resolver por um italiano e que só um estrangeiro podia enfrentar sem receio da oposição e hostilidade das comunidades italianas da África do Sul. Tratava-se da nomeação de um Vice-Consul em Capetown muito desejada pela colónia italiana da Província do Cabo da Boa Esperança. Mas a comunidade era unânime em pedir que o posto fosse confiado ao seu concidadão Nanucci. Este senhor tinha vindo para a África do Sul, havia anos, como palhaço de uma companhia de circo. Agradou-lhe o Cabo e resolveu deixar-se ficar renunciando à sua carreira artística e estabelecendo-se com uma lavandaria a vapor. Empreendedor e respeitabilíssimo, o seu negócio prosperou e Nanucci era um verdadeiro cônsul para os seus compatriotas, a quem dispensava a mais carinhosa e eficaz assistência. Não era de estranhar o desejo da colónia italiana e muito estimaria o seu governo satisfaze-lo. Porém, ao sondar o governo da União, este, por democrático que fosse, teria objetado que o senhor Nanucci, pelo seu antecedente de artista de circo, não seria talvez persona grata nem para as autoridades, nem para o corpo consular estrangeiro do Cabo. Como nenhum outro italiano havia, em Capetown, a quem o cargo pudesse ser confiado, a não ser o Padre salesiano Tozzi, que o não aceitava e era um fervoroso partidário de Nanucci, o governo italiano resolvia nomear pessoa não italiana. Mas, só um funcionário estrangeiro, indiferente à reprovação da colónia italiana, podia levar esse projeto a bom fim. Medici pedia-me para eu escolher pessoa idónea, assegurando-me que o seu governo nomearia quem eu recomendasse.

 

Autorizado pelo nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros, a quem o governo italiano se dirigira, aceitei o encargo e Medici entregou-me o Consulado em 7 de abril de 1913. O reconhecimento do Governo da União veio publicado no diário oficial (Governement Gazette) a 26 do mesmo mês.

 

Convidei o meu amigo Karl Spilhaus, sócio de uma casa comercial pertencente a seus tios e presidente da Câmara de Comércio de Capetown. Conhecia-o bem por me encontrar regularmente com ele nos congressos anuais das Camaras de Comércio e nas reuniões semestrais promovidas pela Administração dos Caminhos de Ferro Sul Africanos, a que eu assistia com agente do Porto e dos Caminhos de Ferro de Lourenço Marques. De nacionalidade alemã nascera em Lisboa, filho de Wilhelm Spilhaus, comerciante estabelecido na Rua D’El Rei, de sociedade com o português Pereira de Melo, bem conhecido também como Diretor do Banco Comercial de Lisboa. Seu pai casara com uma senhora portuguesa, tendo um e outro falecido quando ele Karl e uma sua irmã eram ainda de tenra idade. Recolhidas as duas crianças pela família Spilhaus na Alemanha, foram, mais tarde, mandadas para junto dos tios estabelecidos em Capetown. Karl dizia-me sempre o seu propósito de vir um dia a Lisboa visitar o túmulo de seus pais; veio, efetivamente, depois da primeira guerra, como terei ocasião de relatar.

 

Karl Spilhaus aceitou o honroso encargo e fiz a proposta ao governo italiano que, imediatamente, o nomeou.

 

É certo que foi grande o desapontamento da colónia italiana de Capetown, mas, a breve trecho, Spilhaus, inteligente, ativo, rico e desvanecido com o título de Vice-Consul de um país como a Itália, foi-se impondo à estima dos seus nacionais, a quem prestava auxílio e obsequiava com a maior liberalidade. Cedo se tornou popular entre os italianos.

 

Visita da canhoeira “Calabria”

 

Meses depois, o cônsul de Itália em Lourenço Marques, Abrahão Cagi, preveniu-me da visita da canhoeira “Calabria”, do comando do Capitão Carlo Spagna, que seguiria viagem para Capetown. Como o Consulado de Joahnnesburg era o único posto de carreira, resolvi ir ao seu encontro em Capetown e colaborar com Spilhaus na recepção aos marinheiros italianos e para lá fui com minha mulher. Passamos em Capetown uns dias muito agradáveis e creio que a oficialidade italiana, com o distinto e simpático Carlo Spagna à sua testa, apreciou a estadia e a hospitalidade que Spilhaus lhe proporcionou.

 

Spagna foi convidado a jantar pelo Governador Geral, Lord Gladstone, a quem contou o incidente que motivou o único castigo que tivera como oficial de marinha. Achando-se a bordo de um couraçado juntamente com o Almirante seu pai, de quem era ajudante, vieram prevenir que umas pessoas estrangeiras pediam para visitar o navio. O pai encarregou-o de receber os visitantes, um cavalheiro já idoso, acompanhado de duas senhoras. À saída o cavalheiro agradeceu e, deixando o seu bilhete de visita, pediu para Carlo Spagna apresentar os seus cumprimentos ao almirante. Quando entregou o bilhete ao pai, verificou-se que o estrangeiro era W.E. Gladstone, o grande estadista inglês, pai do Governador Geral. O Almirante Spagna castigou imediatamente seu filho com três dias de detenção por não ter tido a intuição de perceber que estava a tratar com pessoas de alta distinção, a quem devia ter levado à presença dele almirante.

 

Ao chegar a Joahnnesburg fiz um pequeno relatório ao governo italiano sugerindo uma nova visita da “Calabria”, ou outra unidade, com permanência suficiente que permitisse à colónia italiana de Joahnnesburg convidar uma delegação de oficiais e praças a visitar o Rand, a exemplo do que fizera recentemente a colónia francesa com a tripulação do navio-escola Jeanne d’Arc, sob o comando do Comandante Grasset (salvo erro), mais tarde Almirante. Ignoro se viria ou não a fazer-se essa visita, visto que a primeira guerra mundial não tardou a eclodir.

 

 

Início da primeira grande guerra,

alterações no Vice-Consulado

e visita de Karl Spilhaus a Lisboa

 

Logo que a guerra foi declarada, tive, naturalmente, a intuição de que o governo da União não reconheceria alemães como representantes consulares de nações amigas, mas, não desejando demiti-lo, pedi telegraficamente as Karl Spilhaus que me apresentasse sem demora, também por telegrama, o seu pedido de demissão. Ele, que contava com a sua qualidade de cônsul estrangeiro para não ser incomodado, respondeu que não desejava demitir-se. Insisti perentoriamente e mandou-me o telegrama, acrescentando que seguia viagem para Joahnnesburg. Telegrafei-lhe que aceitava a sua demissão e pedia-lhe para entregar o Vice-Consulado a seu tio, o velho Sr. Spilhaus, também de origem alemã, mas de há muito súbdito britânico. Notifiquei o governo da União que o aceitou.

 

No dia seguinte os jornais publicavam a declaração do governo da União de que não seriam reconhecidos nacionais de nações inimigas como agentes consulares de nações amigas. Quando Spilhaus chegou só tive que lhe mostrar o jornal para que ele visse que o meu procedimento era justificado. Poucos dias esteve em Joahnnesburg, pois, como súbdito alemão foi mandado para um campo de concentração, onde se conservou todos os anos da guerra. Terminada ela o ministro Smuts escolheu-o imediatamente para agente comercial da União na Haia. Ali esteve os três anos do seu contrato, que não renovou, regressando a Capetown onde foi logo convidado a presidir o conselho de administração da importante empresa de frigorificação Imperial Cold Storage and Supply Company. Nessa qualidade veio a Lisboa, onde eu já estava instalado com a minha família, inspecionar um terreno que a sua empresa havia adquirido, antes da guerra, com o fim de instalar, aqui, armazéns frigoríficos, projeto que foi posto de parte.

 

Fui, com Spilhaus, inspeccionar o tal terreno, ficando ambos atónitos ao verificarmos que ele estava localizado nas imediações do Campo Pequeno, ao passo que a empresa o tinha comprado na persuasão de que ele se situava junto aos cais, condição essencial para o tráfego de carnes congeladas. Spilhaus viu que a sua empresa tinha sido ludibriada pelo representante que aqui mandou, conluiado com um conhecido homem de negócios português, cujo nome ocultarei.

 

Spilhaus teve ocasião de visitar o túmulo dos pais e recebeu do oficial de marinha Pereira de Melo um retrato do pai Spilhaus, que tinha sido retirado do escritório da firma. Também aproveitou para visitar a Praça da Figueira e vários talhos, ficando surpreendido com a má qualidade da carne que se comia em Lisboa e com a repugnância do público em consumir a magnífica carne congelada.

 

Outra nomeação para o Vice-Consulado de Capetown

 

Se os italianos de Capetown tinham acabado por se conformar com a escolha de Karl Spilhaus, a revolta pela minha reincidência em nomear outro que não fosse Nanucci, foi grande e recebi uma carta violenta do Padre Tozzi, censurando-me pelo meu procedimento em ter, mais uma vez, nomeado um estrangeiro, com desprezo pelas aspirações da colónia em ver o Sr. Nanucci à testa do Vice-Consulado; ameaçava-me de apresentar ao governo italiano uma queixa contra mim. Ditei logo ao secretário do Consulado, o meu bom amigo e excelente auxiliar Fiorino Laini uma resposta em que aconselhava o Padre Tozzi a usar da sua influência de sacerdote e de patriota para acalmar a colónia e a não importunar o governo do seu país que nessa crise angustiosa da guerra, tinha assuntos muito mais graves a resolver do que o do Vice-Consulado em Capetown. Não ouvi mais falar do caso, mas, anos depois, coincidência interessante, tive como guia nas catacumbas de Roma um indivíduo que residira no Cabo e se recordava de mim como cônsul de Portugal e de Itália. Disse-me que o Padre Tozzi se encontrava em Londres como Provincial dos estabelecimentos Salesianos em Inglaterra e na Irlanda, e animou-me a que o visitasse quando ali fosse. Pensei nisso, pois decerto o Padre Tozzi não era homem para conservar ressentimentos e uma hora passada com ele a recordar os incidentes de África, seria com certeza muito agradável. Mas não se ofereceu a ocasião de o procurar. Há tempos, o padre (nome irreconhecível escrito à mão) checoslovaco, das Oficinas de S. José, em Lisboa, disse-me ter servido sob as ordens do Padre Tozzi, figura ilustre da Ordem dos Salesianos.

 

O maestro Galeffi

uma ópera em Pretória

e um concerto em memória de Verdi

 

Fui uma vez solicitado pelo meu amigo maestro Galeffi, bom chefe de orquestra, que tinha vindo para África com uma companhia de ópera italiana, para tentar uma diligência junto do Ministro da Justiça a favor de um comerciante italiano, que, havia anos, vinha defraudando a alfandega com a apresentação de faturas falsas de mercadorias sujeitas a direitos ad valorem. A penalidade era a cadeia com a alternativa de pesada multa. Era evidente a inutilidade de tal diligência, mas não quis recusá-la aos italianos, e lá fui, com o Maestro, a Pretória fazer o “frete” de pedir ao Ministro o que eu bem sabia que ele não fazia nem poderia fazer. E assim sucedeu. É interessante acrescentar, que esse Ministro, pouco depois entrava na revolta contra a soberania britânica e perdia a vida ao mesmo tempo que o outro caudilho, o General De La Rey.

 

O Maestro Galeffi montou a Carmen em récita de amadores em Pretória. O papel da protagonista foi desempenhado por Madame De Waal, a gentilíssima filha do General Louis Botha, que mandou pedir se eu lhe arranjava um bom manton [1] de Manila. Recorri a uma senhora amiga, de Lourenço Marques, que os tinha, magníficos, e que concordou em emprestar um, mas observando que o seu valor era superior a cem libras. A Madame De Waal não quis correr o risco de o manton se danificar no palco, com o descuido de qualquer dos amadores.

O papel do chefe dos contrabandistas, foi confiado ao Vice-Consul de Portugal em Pretória, Victor de Waegenaeri, o de Escamillo a Phil. Levy, sobrinho do senador e financeiro Samuel Marks, bem conhecido dos portugueses pelos interesses que tinha em Lourenço Marques.

 

Para récita de amadores o maestro Galeffi pôde gabar-se de ter conseguido um espetáculo acima do vulgar.

 

Também presidi a um concerto organizado pela colónia italiana para celebrar o centenário de Verdi. Foi pedida a colaboração do Sr. Landau gerente do armazém de música de Mackey Brothers. Disse-me ele que as discussões, nas reuniões, posto que sempre amigáveis, eram tão acaloradas e tanto se gritava em italiano, que ele receava a cada passo ver os punhais saírem das bainhas!!!

 

Final da Gerência do Consulado

 

Em Outubro de 1914, salvo erro, entreguei o consulado ao cônsul Medici, regressado da Europa e ainda hoje recordo a representação da nobre nação italiana como um dos mais gratos momentos da minha vida oficial. Não o esqueci ao voltar para Portugal e mantive as mais agradáveis relações com os Ministros Barão Valentino e Bastianini, com o secretário da Legação Buchevici e com o cônsul Rivera. Aproveitei a visita da esquadra do Almirante Conte para lhe oferecer, e à sua oficialidade, uma pequena festa em minha casa.

 

Uma história de superstição

 

Uma semana antes da sua transferência para a Embaixada em Moscovo, visitei o Secretário Bucevich, convalescente de um ataque de gripe. No meio da conversa ele levanta-se de repente da cadeira onde estava e, visivelmente incomodado, retira de cima da cama o chapéu que eu, ao entrar, lá tinha posto, dizendo que era de mau agouro pôr chapéus em cima das camas. E, como eu não partilhasse da sua superstição, insistiu: Vous ne savez pas ce que vous dites; la jettatture [2]est um fait et um fait dangereux. O incidente repetiu-se semanas mais tarde, na véspera da sua partida quando me fui despedir dele no quarto onde arrumava a sua abundante roupa em malas, com a ajuda de dois amigos italianos. Distraidamente, tornei a pôr o meu chapéu em cima da sua cama, e, de repente, Bucevich, aflitíssimo exclamou: “Mais vous êtes incorrigible, Seruya”, e colocou o meu chapéu em cima de uma mesa.

 

No dia seguinte chegou à estação do Rossio uns minutos antes da partida do Sud Express. Os seus amigos, e eram numerosos, que o aguardavam para se despedirem, só tiveram tempo de o empurrar para a carruagem. E quando, da porta, acenava as suas despedidas, gritou, de repente, que não tinha trazido o bilhete do comboio, nem o seu passaporte. O comboio estava em marcha e o Cônsul Rivera e eu fomos expor o caso ao chefe da estação, que se prontificou logo a telefonar para a fronteira.

 

Soube-se depois que Bucevich, ao passar na estação de Hendaye, perdeu a ligação para Paris, e que, em Paris, foi atropelado por um automóvel. Três meses depois da sua chegada a Moscovo, o meu pobre e chorado amigo Bucevich faleceu em resultado do gaseamento que sofrera durante a guerra, batendo-se como voluntário de território irredente [3].

 

Fui um jettatture nesta conjuntura? Recuso-me a admiti-lo, pois o caso Bucevich foi o único em toda a minha vida e o infeliz diplomata italiano sofria de moléstia que raramente perdoava.

 

 

Posto que já vai longo este relato

Notas sobre outros italianos

 

Posto que já vai longo este relato, não quero terminá-lo sem algumas notas a respeito de alguns italianos com quem mantive relações de amizade, em Joahnnesburg. Citarei os Cônsules:

 

Marchese di Grimaldi, já bastante idoso, um simpático “bom vivant”.

 

Daneo, promovido a ministro na Pérsia e com quem mantive correspondência durante algum tempo. Anos mais tarde, ao fazer tratamento de águas em Harrogate, no Yorkshire, em Inglaterra, encontrei, no hotel, um sujeito que tinha dirigido um banco inglês em Teerão. Perguntei-lhe se tinha conhecido o ministro Daneo. “Muito bem. Ainda lá está.” Manifestei a minha surpresa por Daneo se conservar tantos anos no mesmo posto. Respondeu cinicamente que Daneo tinha falecido em Teerão.

 

Cesare Poma, um erudito investigador de etimologia de nomes próprios. Recebia sucessivas edições da pandecta[4]romana e assim prosseguia pacientemente os seus estudos. Uma vez que eu lhe disse que o distinto financeiro de Joahnnesburg, Sir George Albu, se julgava descendente da família portuguesa do grande Albuquerque e tencionava vir a Lisboa, na primeira ocasião, para averiguar o facto, respondeu-me logo: “Pas du tout. Il descend de Paulo Albo, juif espagnol chassé d’Espagne pour cause politique, non religieuse, au quinzième siècle et qui c’est ‘etabli à Hambourg”. Sir George, de facto, era natural de Hamburgo onde o seu nome original de Albo se tinha transformado em Albu. Poma jé tinha estudado o nome desde o dia em foi agradecer o donativo de cinco mil libras oferecido pelo grupo mineiro Albu quando dos terramotos na Calabria. Mantive correspondência com Poma durante bastante tempo, até que, lhe mandei de Lisboa um exemplar de Antroponimia Portuguesa, do Professor Leite de Vasconcellos, obra que ele decerto muito teria apreciado. Dias depois, o livro era-me devolvido pela Senhora Poma com uma carta em que me dizia que o seu filho Cesare nem chegara a vê-lo por ter falecido repentinamente a seguir a uma partida de xadrez com ela.

 

Já citei o meu bom amigo Francesco Medici di Marignano, que me entregou a gerência do Consulado. Procurei-o uma vez que estive em Roma, sendo-me dito que havia falecido. Constou-me que durante a guerra de 1914/1918, foi encarregado de importantes missões pelo seu governo.

 

E finalmente Natale Labia, que ainda se encontrava em Joahnnesburg quando eu de lá me retirei. Brilhante homem de sociedade, casou com a mais rica herdeira da África do Sul, a filha do milionário Sir Joseph Robinson, contribuiu generosamente para os fundos do partido fascista e foi promovido a Ministro de Itália junto do Governo da União Sul-Africana. Escreveu-me para Lisboa a dizer que esperava ser nomeado para Portugal, mas, pouco depois, escreveu que resolvera continuar à testa da Legação no Cabo, onde tinha assuntos importantes a tratar. Veio a falecer no seu palácio em Capetown, vitimado, segundo me disseram, pelo choque que lhe causou a notícia da entrada ao lado da Alemanha, na segunda guerra mundial.

 

Labia sabia viver, como costumava dizer-se. Agraciado por Mussolini com o título de Conde, as suas festas em Capetown eram opulentas e comprou um histórico palácio em Veneza para o restaurar e mobilar.

 

Guardo a mais grata recordação dos meus amigos Medici, Poma, Daneo e Labia.

 

Um outro cônsul de Itália que não cheguei a conhecer, esteve em Joahnnesburg. Era o conde Alberti degli Alberti. Visitou-me quando chegou, segundo a praxe e, quando, no dia seguinte, retribui a visita, fui levado ao seu quarto de cama, onde o infeliz já se encontrava em caixão, fulminado por uma apoplexia.

 

Amigos na colónia italiana não oficial

e uma história de espionagem!

 

Da colónia não oficial recordarei Bovi, perfeitíssimo gentleman, de Bolonha, que, tendo dissipado a sua fortuna, viera para Joahnnesburg como “remittance man”. Eram assim conhecidos filhos de família a quem os parentes estabeleciam mensalidades afim de os conservar afastados dos seus países. Bovi era um ótimo jogador de poker e fazia parte de um grupo de quatro cavalheiros italianos que, nada tendo que fazer quando as tropas britânicas ocuparam a cidade, no decurso da guerra sul-africana, passavam a tarde e a noite a jogar pacatamente. As reuniões realizavam-se no hotel, em Pritchard Street, de que um deles era proprietário e próximo de uma igreja onde costumava ouvir missa, ao domingo, o Marechal Lord Roberts, Comandante em Chefe do exército britânico. Uma senhora Boer, que aceitara emprego das autoridades inglesas, como informadora, lembrou-se, para justificar o seu salário, de denunciar à polícia os quatro italianos como tendo construído um túnel entre o hotel e a Igreja afim de fazer esta ir pelos ares quando o Marechal lá estivesse. A polícia militar teve a ingenuidade de acreditar e um pelotão de soldados, de baioneta calada, apresentou-se no hotel a prender os conspiradores, levando-os para a Fortaleza. Imediatamente se verificou o erro, mas, por questão de prestígio, julgou-se acertado conservar os homens alguns dias na Fortaleza. Isso deu-lhes tempo para se instalarem comodamente, recebendo de suas casas boa comida e passando o tempo a jogar, sempre tratados com a maior amabilidade pelas autoridades da prisão. Ofereceram-lhes pô-los em liberdade se assinassem uma declaração de comparência ao seu julgamento. Responderam que não haviam cometido nenhum delito que justificasse julgamento e que optavam pela prisão onde se achavam muito bem. Ao cabo de três semanas foram chamados à Polícia onde o Comissário lhes pediu para se comprometerem, por escrito, a não se ausentaram de Joahnnesburg sem autorização das autoridades, formalidade exigida então a todos os habitantes, sem exceção. Fizeram-no prontamente e, ao despedir os conspiradores, o Comissário apertou-lhes efusivamente as mãos restituindo-lhes todos os seus documentos, incluindo as licenças de sair à rua de noite, de andar a cavalo, de carruagem ou de velocípede, de entrar nos edifícios oficiais, etc., licenças essas que em estado de sítio como se achava a cidade, só a pessoas de confiança eram concedidas.

 

Foi Bovi quem me obteve, para o álbum da minha saudosa irmã Lyce, os autógrafos de Gariel de Annunzio, de Carducci, do pianista Martucci e de Enrico Panzachi. Este último, escritor e homem público ilustre, escreveu, em minha intenção, que o poeta Eugénio de Castro, de Coimbra, lhe dedicara um poema que fora traduzido por “uma boa e bela senhora”, também portuguesa, casada com o Marchese Zappi, seu amigo e colega no Parlamento. Não consigo identificar esta senhora portuguesa.

 

Fui também amigo do Doutor Tullio Mangiarmachi, que serviu como voluntário nas formações de saúde das forças bóer e, quando Joahnnesburg caiu, fez parte do hospital de sangue dirigido por uma distinta senhora francesa, a Condessa de Ferrières. Dizia-se que era irmã da grande artista Madame Bartet e que o Conde, seu marido, homem extremamente fino e simpático, tinha vindo também para a África do Sul como “remittance man”.

 

Salomão Seruya ensaia fado a barítono italiano

 

Dei-me também com Terrasi, barítono que viera igualmente com a companhia de ópera e ficou em Joahnnesburg como professor de canto. Ensaiado por mim cantou uns versos de fado na sessão solene que se organizou em honra de Portugal quando entramos na guerra em 1916. Apoiado por um grupo de amadores preparava-se para vir à Europa contratar o Caruso para uma série de concertos na África do Sul, quando o grande cantor faleceu.

 

E outros italianos distintos (todos artistas)

 

Três outros indivíduos italianos deixaram bom nome em Joahnnesburg.

Danza, excelente pianista e professor. Uma distintíssima artista casada com um cavalheiro inglês, de cujo nome me não lembro. E finalmente o professor Margottini, vindo de uma república da América Central, onde dirigira um Conservatório. Bem acolhido pela sociedade, conseguiu que uma comissão de senhoras, de que fazia parte madame Cerutti, esposa de um financeiro de Milão, que residiu algum tempo em Joahnnesburg, o auxiliasse na formação da Sociedade Musical de João Sebastião Bach.

(Este casal Cerutti era das relações da Marchesa di Socagno, uma senhora de Milão que foi nossa companheira de viagem quando eu fui, com minha família, em excursão ao Cabo Norte no vapor inglês “Atlantis”.)

 

Colaborei eu próprio na organização de um concerto de orquestra, ficando espantado quando Margotinni, apesar da minha oposição, colocou os segundos violinos à sua esquerda e os primeiros à direita. Pouco depois cortámos relações, não me recordo por que motivo, e só mais tarde, nas vésperas do meu regresso à Europa, nos reconciliámos. Margotinni tinha um filho na marinha de guerra italiana.

 

No ressurgimento da nossa marinha de guerra

 

Já que estou com a pena na mão acerca das minhas relações com italianos, quero recordar que, quando do ressurgimento da nossa marinha de guerra, levado a efeito pelo Ministro Magalhães Correia, minha mulher e eu oferecemos um chá-bridge à delegação dos estaleiros italianos que veio ao concurso aberto em Lisboa para a construção dos novos navios. Para coordenar os esforços dos estaleiros, Mussolini encarregou da presidência da delegação um homem da sua confiança, o senhor Frederico Jarrah, importante industrial de Milão. Numa excursão às ilhas gregas, o ano passado, tivemos como companheira de viagem, a bordo do vapor Semiramis, uma neta do Sr. Jarrah, que fazia a sua viagem de núpcias com o marido.

 

 

Escrito em Lisboa, em Maio de 1956

 

 

 

 

 

 

Documentação junta:

  1. Termo de entrega do Consulado a S. Seruya em 7 de Abril de 1913.
  2. Exequatur do Governo da União Sul-Africana.
  3. Carta do Consulado de Itália em Joahnnesburg agradecendo a Gerência de S. Seruya e dizendo que o Ministro dos Estrangeiros sentia não poder condecorar-me por não o autorizarem as leis portuguesas. (31 de Março de 1915)
  4. Cópia da minha resposta.
  5. Carta do Ministro dos Estrangeiros de Itália comunicando ter-me sido conferido o grau de cavaleiro da Ordem de Itália. (1921)
  6. Cópia da minha resposta.

[1] Grande xaile ou manto

 

[2] Uma pessoa que traz má sorte!

[3]irredentismo italiano é uma doutrina defendida por aqueles que entendem que devem pertencer à Itália todas as regiões que, embora politicamente separadas daquele país, estão ligadas a ele pelos costumes e pela língua.

 

[4] Uma compilação de fragmentos de jurisconsultos clássicos.