A Viagem
Depois de eu ter feito exame do 4º ano, no Passos Manuel, com 12 valores, partimos, eu e o Víctor, no Sud-Express, na 5ª feira, 24 de Julho. A Mãe já tinha partido com a Yvonne e a Christina e nós íamos ter com ela à Bourboule. Em Canas, a Avó Esther, tia Júlia, D. Albertina, que estavam na Felgueira vieram-nos ver ao comboio. Em Albergaria subiu o presidente da Fidac [Fédération Interalliée des Anciens Combattants], tenente-coronel Abbott, que tinha estado em Lisboa e que tinha ido visitar a Batalha. Teve uma manifestação entusiástica em cada estação por onde passámos.
Chegámos a Bordéus ao meio-dia e meia. Fomos para o Terminus. Depois do almoço demos uma volta pela cidade. Vimos a Torre de St. Michel onde existem umas múmias muito antigas. Vimos a Catedral, a Église St. Croix em estilo românico; o jardim público, lindo; e o Palais Gallien. Às 7,30 fomos visitar os Srs. Ferreira de Castro. Jantámos num restaurante onde se comia bem, mas onde a clientela deixava muito a desejar.
No sábado dia 26 partimos para a Bourboule às 10,20.
Almoço em Périgueux e chegada a Bourboule pelas 6,30. À noite jogámos um bridge com o Adolfo.
No Domingo visitámos o médico de manhã. O Dr. Maurel receitou-nos e indicou-nos o tratamento. À tarde a Amélia Rey Colaço que estava no Mont Dore veio ter connosco e fomos a Charlannes. À noite repetimos o bridge.
No dia seguinte, 28, tomei o banho à tarde. À noite jogo.
Na terça-feira 29, fomos à Roche des Fées e demos um passeio pelo caminho do Barrage. Os Soutos foram-se embora para Bordéus.
No dia 31 fomos ao Mont Dore e com a Amélia subimos ao Salon du Capucin. Passou-se lindamente. Tem um “slating ring” e depois de comermos demos uma passeata ao “sommet” du Capucin. Como panorama é uma beleza.
No dia 1 tivemos um pouco de sol e bom tempo. Mesmo durante toda a estada lá nunca tivemos um “beau fixe”. Um dia em cada semana é que se podia dizer ser um dia de verão. Nessa noite o Víctor tinha-se chegado um pouco para a sociedade do hotel. Combinou-se uma burricada à “Ile de Mouches”. Os burros eram 8 e mais duas “charretes” a cavalo levavam as senhoras com o resto das pessoas. Foi muito divertido, mas o conhecimento com todos ainda não estava bem consolidado.
Dois dias depois chegaram os Ferreira de Castro. No dia seguinte chegou à Bourboulle a M.lle Paris que não nos encantou nada. Houve um baile no Casino e o Víctor foi com as raparigas do hotel.
Há algum tempo que eu tinha visto umas bicicletas e por fim decidi-me a alugar uma. Dei vários passeios bonitos. No sábado 9, fui sozinho a Fontaine P´trificante. Foi um bom passeio de 1 hora e um quarto.
No dia 12 recebemos uma telefonadela do Mont Dore: era a Esther Oulman. Veio-nos ver. À noite juntou-se a mocidade do hotel, como se fazia quase todas as noites e jogou-se animadamente. No hotel havia exclusivamente raparigas. Quando um rapaz grego Arvanitidi se foi embora só eu e o Víctor compúnhamos a juventude masculina.
Há bastantes dias tínhamos recebido um telegrama da Tia Rachel dizendo que talvez viesse passar uns dias connosco. Chegou na quinta-feira às 7,30 da manhã. Ficámos muito contentes. À tarde fomos à Marquise de Sevigné.
Os Andrew Cohen estavam em Vichy. Vieram-nos ver no dia 15. Chegaram ao meio-dia. Ficaram esse dia e o seguinte. Demos um passeio a Charlannes e voltámos a pé. Partiram no dia 17, anos do Víctor, de manhã. Fomos à tarde ao Lac Guéry com a Esther Oulman. A Tia Rachel partiu essa noite para Paris. Tivemos muita pena porque era uma companheira.
Fomos conhecendo melhor a gente do hotel. Toda gente muito bem e muito simpática. Havia uma família italiana, Berlingieri, muito simpáticos. Viviam em Nice e o Víctor ainda se corresponde com as raparigas.
Uma senhora e duas filhas de Marselha, Augst, também eram muito simpáticas.
Umas senhoras Sargos de Bordéus também muito bem.
No dia 20 a Esther levou-nos ao Lac Pavin, um lago vulcânico lindo.
Encontrámos, num bazar, várias pedras e nós, como nos interessamos bastante por geologia, comprámos bastantes pedras.
Demos lindos passeios em automóvel com os Ferreira de Castro. Fomos a Clermont e Royat. Aqui visitámos a Taillerie onde comprámos vários minerais. Visitámos a Catedral que é linda. Tem duas rosáceas com vitrais lindíssimos e um candelabro de Caffieri muito rico.
Fomos ao Lac Chambom que é lindo e muito grande. Remámos uma hora.
Outro passeio esplêndido foi ao Puy de Dôme.
Tem uma estrada especial até ao cume, para automóveis, e vê-se um lindíssimo panorama sobre as montanhas da Auvergne. No observatório há um mapa com os nomes dos montes e distâncias. Foi um ótimo passeio. No caminho visitámos uma igreja antiga, Notre Dame de Orcival em estilo românico arvenato.
[L’art roman auvergnat est une variété notable de l’art roman qui s’est développée en Auvergne aux xie et xiie siècles. Elle se caractérise par sa richesse ornementale et l’homogénéité de son style. Par extension, on y inclut la petite province du Velay qui fut souvent placée sous la même couronne comtale à cette époque.]
No Puy de Dôme vimos um templo de Mercúrio. Já em ruínas; o lugar onde o aviador Renaux aterrou e um marco para indicar o sítio onde Pascal fez a sua experiência.
Vimos também em Monferrand uma igreja muito bonita em estilo gótico. As casas antigas são curiosíssimas; com janelas muto bonitas e portas.
Havia alguns dias que a Esther Oulman nos tinha interessado numa viagem que ela tinha feito. Nos dias 28, 29 e 30 andámos a fazer planos e, por fim, resolvemos ir. Arranjou-se um carro e partimos no dia 1.
No dia antes tinham partido os Belingieri e à noite conversámos muito com o príncipe Murat que conhecia muito bem essa região das grutas. Disse-nos que o seu bi ou trisavô tinha sido fuzilado no castelo dos Belingieri.
No dia 1 partimos enfim às 8,40 com os Ferreira de Castro. Chegámos a Vic sur Cère às 12 depois de ter passado por La Tour-d’Auvergne, a floresta e vila de Le Lioran que é lindo; um túnel compridíssimo de 1.400 metros. Em Vic almoçámos no hotel Le Manoir. No caminho para Rocamadour visitámos a gruta de Padirac que é uma maravilha.
É uma gruta natural no fundo da qual se descobriu um extraordinário rio subterrâneo que conduz a umas grutas de estalactites maravilhosas. Vimos também as Grottes de Presque interessantíssimas. Às 6,45 passámos por Alvignac e chegámos a Rocamadour às 6,50 com um enorme calor. Fomos para o Hotal Beau Site e à noite jantámos no terraço.
De manhã levantei-me cedo e fui dar um passeio só de máquina em punho. Estava um dia lindo. Rocamadour é uma vila interessantíssima, muitíssimo antiga e situada num canon onde corre um riozito: o Alzon. É construída no sopé dum enormíssimo rochedo a pic no qual estão construídos os santuários e lá em cima o castelo.
Sanctuaire Notre-Dame de Rocamadour
Rocamadour foi um centro de peregrinações muito importantes e ainda é. A vila tem só uma rua principal cortada por portais muito antigos e ainda se vêm casas antigas. Da rua parte uma escadaria de 140 degraus (que os peregrinos sobem de joelhos), e que conduz à três igrejas. Do castelo tem-se uma vista lindíssima. Numa das capelas estão pintadas na abóboda os reis que foram a Rocamadour em peregrinação e eu fiquei espantado em ver o rei D. Afonso III de Portugal.
Nessa manhã, dia 2, visitámos tudo o que havia a ver. Partimos às 12,10. Dum ponto da estrada vê-se Rocamadour e realmente é interessantíssimo. Chegámos às grutas de Lacave às 12,50. Almoçámos primeiro e em seguida fomos visitar a gruta. É interessantíssima. É formada por uma série de galerias com nomes diversos. Há estalactites e estalagmites que dão a ideia de formas humanas, animais, etc. Ficámos encantados. Saímos de lá às 3,40. Tirei um retrato ao castelo de Belcastel.
Passámos às 4 em Souillac que tem uma igreja (estilo romano); Sarlat às 4,55; tem muitas casas antigas e entre elas a de La Boétie[1] onde ele nasceu.
[1] La Boétie é o fundador ignorado da antropologia do homem moderno, do homem das sociedades divididas. Antecipa, a mais de três séculos de distância, o cometimento de um Nietzsche (mais ainda que o de um Marx), que consiste em pensar a degradação e a alienação.
Fundador da moderna filosofia política em França, nasceu na região de Périgord, no seio de uma família aristocrática, tendo ficado órfão em tenra idade. Estudou leis na Universidade de Orleães e a sua precocidade e o seu talento valeram a La Boétie a nomeação régia para o parlamento de Bordéus. Fez uma notável carreira como juiz e diplomata até à sua morte prematura em 1563. Grande amigo de Michel de Montaigne, veria a amizade entre os dois imortalizada na obra do famoso ensaísta. Distinguiu-se também como poeta e humanista, pelas traduções de Xenofonte e de Plutarco e pela sua proximidade com o eminente grupo de poetas da Plêiade.
Às 7,20 chegámos a Les Eyzies, estação pré-histórica das mais importantes. Visitámos a gruta de Font de Gaume muito conhecida e onde existem pinturas ainda muito nítidas.
Na Laugerie Basse visitámos a gruta do Grand Roc colossalmente interessante sob o ponto de vista de estalactites, e muitas mais coisas haveria que ver se tivéssemos tempo. A região da Dordogne, do Lot, é conhecidíssima pela sua riqueza em grutas pré-históricas e estalactites.
Chegámos a Bergerac às 8,40. No dia seguinte estávamos em Bordeuax às 9,40 e chegávamos a St. Jean de Luz pelas nove tendo deixado os Ferreira de Castro em Bordéus.
Até Bergerac a viagem foi sempre feita em automóvel. Foi assim muito mais bonito. É linda toda aquela região.
O resto das férias passámos em St. Jean de Luz. Foi ótimo. De vez em quando alugávamos um canot e dávamos uma volta pela baía antes do banho. Às vezes eu dava um passeio de bicicleta a Ascain ao golf novo de Chantaco, etc.
No dia 7 sem esperarmos absolutamente nada chega o pai de surpresa. Nunca vi surpresa tão bem feita! Tinha vindo de Kissingen em automóvel com o Sr. Müllman que tinha encontrado lá! Foi ótimo! Fomos várias vezes no Voisin [carro parecido com a foto?] a Biarritz e o pai e mãe foram ao baile do Miramar no dia 11. O Pai partiu a 14. Fez-nos imensa falta.
Eu comecei com o golf. Tive algumas lições e já não ia nada mal.
Não conhecemos ninguém no hotel. No último dia travámos conhecimento com umas raparigas na praia.
No dia do equinócio muitos plongeoirs ficaram em fanicos. Tenho alguns retratos.
Fomos algumas vezes ao cinema, mas quase sempre fitas más. Nos últimos dias joguei golf. No dia 21 fomos ver um torneio de tennis a Chantaco em que entraram o Gentien e o Brugnon.
Chegámos a Lisboa no dia 30 de Outubro.
Foram umas das melhores férias que tenho passado.