Viagem nas férias da Páscoa – 1931

Passeio ao Algarve

nas férias da Páscoa

de 1931

No “Nash”

“Com pormenores”

Lisboa, Abril de 1931

 

“A nossa viagem ao Alentejo e Algarve”

Como é costume todos os anos, nas férias da Páscoa, fazemos uma excursão em automóvel. Este ano escolhemos o Algarve.

O Alex, que veio a Lisboa para as férias, foi o nosso companheiro e ao mesmo tempo chauffeur e mecânico.

Na manhã de 4ª feira, 8 de Abril, tínhamos resolvido tomar o vapor das 9,20 h.; mas o Alex que se tinha deitado muito tarde na noite antes não acordou a tempo e só partimos no das 10,10h.

De Cacilhas partimos às 10,35 com rumo a Évora, marcando o conta quilómetros = 19735.

Passámos por Setúbal às 11,18. O Alex comprou cigarros. Saímos às 11,30 com o tempo um pouco chuvoso. Às 12,30 parámos num lugar abrigado para almoçarmos copiosamente e seguimos caminho.

Em Montemor visitámos as ruínas do castelo (Fotografia nº 1). Vimos no guia que aí tinha sido morto Pero de Albuquerque, facto que interessou sumamente o Alex por ser talvez irmão do grande Afonso.

 

Pouco depois de Montemor a 200 metros da estrada fomos ver, sem pedir licença à gente do “monte” em que ele se encontra, uma anta ou dolmen (Fotografia nº 2).

Os irmãos Carlos (à esquerda) e Víctor Seruya      (atrás do dolmen à direita).

Segundo o Alex, as antas, construções celtas, serviram de postos de observação dos astros e onde se estudava meteorologia mas por se terem encontrado várias ossadas e outras coisas afirma-se que que são túmulos e não altares religiosos.

Seguimos em seguida direitos a Évora onde chegámos às 3,55h. 

Fomos logo ao museu e biblioteca que estava quase a fechar.

Fomos depois tomar um café ao Hotel Alentejano. Entrámos por ali dentro até à sala de jantar sem ver vivalma! Por fim tivemos que ir chamar um criado!

Depois fomos visitar a cidade. A Sé, a Ermida de S. Brás, gótica, do tempo de D. João II; a linda igreja dos Loios, dos Duques de Cadaval. Tem azulejos lindos de António de Oliveira (1711). A frontaria do Convento da Graça acabada em 1529; a fonte das portas de Moura do tempo de S. Sebastião. E o aqueduto de Sertório, do tempo de D. João III.

Jantámos e dormimos no Hotel Eborense. A sobremesa foi uma conferência do Alex sobre História de Portugal dos séculos XIII, XIV, XV e XVI encarada sob o ponto de vista antroposófico.

No outro dia de manhã fomos visitar o Convento do Espinheiro, a 2 Km. de Évora seguindo pelo caminho dos “clips” como nos indicou um camponês. É célebre porque foi aí que D. Manuel recebeu a notícia do descobrimento do caminho marítimo para a Índia.

Numa quinta ao lado do convento existe uma ermida que tem o túmulo de Garcia de Resende, moço de escrevaninha de D. João II e que publicou o “Cancioneiro Geral”. A pedra tumular é lindamente trabalhada, serviu durante algum tempo de mesa de cozinha!

Voltámos a Évora e marchámos em direção a Beja. Eu, sempre em busca de pesquisas, tinha trazido de Lisboa um martelo e um escopo. No caminho parei para apanhar umas pedras … e quando olho para trás estava o carro em marcha! Deixei-me ficar entregue aos pedregulhos e fui andando devagar. Mas nunca mais via o carro. Não estava gostando da brincadeira pois era uma poeirada cada vez que passava um carro. Até que por fim lá vi o Víctor que também se tinha apeado para apanhar algumas pedras. Quando cheguei ao automóvel deparei com o Alex adormecido. Tinha-se deitado tardíssimo na noite antes porque tinha ido esperar o Dr. Stein e conversou até tardíssimo. Ficámos aí uma boa meia-hora.

Pouco depois entrámos no verdadeiro caminho alentejano, com covas horríveis, sulcos, riachos atravessando o caminho, etc. Em Alcáçovas o caminho melhorou e no Torrão em estrada verdadeira. Em Ferreira do Alentejo, logo à entrada, encontrámos umas mulheres do campo, muito curiosamente vestidas, grevas e botas. O Alex parou ato contínuo e enquanto tagarelava com elas, eu, sorrateiro, ia por detrás do carro e tirava-lhes o retrato. Algumas deram por isso e viraram-se envergonhadas!

Às 2,15 h. chegámos a Beja. Como nesse dia só tínhamos comido os restos do pic-nic do dia anterior entrámos num café e à falta de alimentos sólidos bebemos um refresco. Visitámos em seguida o castelo que, restaurado recentemente tem a torre de menagem lindamente conservada. Do alto a vista é linda, mas a paisagem é uma planície. O castelo foi iniciado por D. João III e as duas torres que ainda subsistem foram mandadas erigir por D. Dinis. Na varanda superior existem uns orifícios por onde os sitiados deitavam azeite a ferver e chumbo derretido sobre os inimigos.

Às 3,40 h. saímos da cidade e logo nos metemos em caminho alentejano. Tinham-nos dito que não nos metêssemos a caminho sem guia porque fatalmente nos íamos perder, mas não fizemos caso. Depois de vinte minutos já nos tínhamos perdido. Perguntámos a um rapaz o caminho do Cêrro e disse-nos que era muito mais atrás. Foi incalculável a sorte que tivemos em encontrar um Citröen na encruzilhada. O Alex apeou-se e foi falar ao dono do carro. Também ia para o Algarve e ia guiado por um Ford. Por acaso não o tínhamos visto passar? Sim senhor, há bocadinho. Metemo-nos atrás deles e foi o que nos salvou. Encruzilhadas sem fim, sem marcas de automóveis, sem letreiros, desérticos, quilómetros e quilómetros sem ver vivalma, enfim o pleno Saarah alentejano. Andámos assim uns 50 quilómetros só com um incidente: “um encravanço”. Quando chegámos à estrada nacional fizemos uma combinação com o

Sr. Ramires, dono da lata Citröen que já tinha uns 150.000 quilómetros. Ele e o filho vieram para o nosso carro e a bagagem foi no carro deles. Assim continuámos a viagem. Eram 5,25 h.

Depois de percorrida a extensíssima reta de Almodôvar entrámos no Algarve, atravessando a fronteira, o rio Vascão, às 6 horas. Daí por diante começa uma séria de curvas cada vez mais apertadas. Atravessámos assim toda a serra do Caldeirão mas o que nos valeu foi a estrada ser esplêndida. O valente Nash subiu sempre em prise aquelas curvas. Levámos 1 hora e ¼. A vista sempre linda e de caracter muito diferente das paisagens que estou habituado a ver.

Piteiras já com tronco em Castro Marim
Forte interior do castelo de Castro Marim

Passámos às 7 horas em Alportel e às 7,25, quase morto chegámos a Faro. Às 8,30 chegámos a Vila Real de S.to António, tendo percorrido 530 quilómetros. Jantámos no Hotel Guadiana com os Ramires. Deitámo-nos e no dia seguinte o tempo estava chuvoso. Era 6ª feira, 10 de Abril. Almoçámos e o Víctor telefonou aos Sousa Coutinho, falando com s D. Justina. Combinámos estar em casa dela às 2,30 h. Eram 11,30 quando saímos de Vila Real. Metemos por um caminho todo enlameado e chegámos a Castro Marim. O castelo é pouco interessante por estar muitíssimo danificado. O guia disse-nos que foi lá que se estabeleceram primeiro os Templários e depois de alguns anos só é que se mudaram para Tomar. Partimos depois para Faro. Parámos em Tavira e almoçámos otimamente numa modestíssima pensão.

Chegámos a Faro um pouco atrasados. Estivemos em casa dos Sousa Coutinho, mas falámos só com a D. Justina. Numa ocasião o Víctor sugeriu a ideia de irmos visitar o palácio do pai. Mandou logo vir o carro e fomos todos até lá. Madame Fialho recebeu-nos lindamente. Mas que lindíssima casa. E as preciosidades do interior!!! Faianças, quadros, gobelins, etc. enormíssimos salões. Deu-nos um esplêndido chá com bananas do enorme bananal da quinta. Fomos depois passear. Vimos anoneiras, um bom “court” de tennis, um jarro enorme, árabe, encontrado durante a construção do palácio. É todo ele em mármore.

Quando nos fomos embora prometeram-nos mandar uma bananeira e cachos de bananas para Lisboa o que cumpriram. Também nos convidaram para almoçar domingo, na volta de Sagres. Partimos às 6,30 h para Sagres. Já perto de lá vimos que o pedal de embraiagem não embraiava! Bem arranjados! Chegámos a uma encruzilhada e enfiámos, sem saber, por uma delas. Bonito! Fomos dar ao porto! E o carro que não desembraiava! Lá estive eu e o Víctor às escuras a empurrar o carro num vai-e-vem contínuo até virar o carro e por fim demos-lhe um empurrão e pegou em prise!

Chegámos a Sagres era noite cerrada às 9,30 h. Parámos à porta do Hotel Luís. O Sr. José Luiz muito amável veio receber-nos. O carro foi posto na “cour” toda enlameada do luxuoso hotel. Jantámos e dormimos bem.

Víctor Seruya na pesca em Sagres

Na manhã seguinte fomos pescar para as falésias. Foi esplêndido, vimos imenso peixe, mas não apanhámos nem um!! Depois do almoço inspectámos o motor: era a porca do pedal que estava desapertada; sorte não ter caído. À tarde ainda pescámos e só para as oito horas é que o Alex apanhou 3 peixitos.

Encomendámos para o dia seguinte umas lagostas vivas e nesse dia, Domingo, depois de termos ido ao cabo de S. Vicente, partimos para Faro. Em Lagos avisámos por telefone os Sousa Coutinho que íamos lá almoçar e em Portimão comprámos uns D. Rodrigo.

Chegámos a Faro ao meio-dia. Cada um foi para o seu lado. Eu ao correio, o Víctor ver o Sr. Amram e o Alex a levar o carro a tomar banho e meter gasolina. À 1 h. encontrámo-nos em casa dos Sousa Coutinho que nos deram um opíparo almoço, esplêndido. Depois do almoço fomos com os dois rapazes D. Nuno e D. João, no seu esplêndido carro, visitar as ruínas de uma antiga cidade romana Ossónoba [Ossónoba foi uma antiga cidade situada na zona Sudoeste da Península Ibérica, no mesmo local em que foi depois construída a cidade de Faro, na região do Algarve, em Portugal. Também foi conhecida, na antiguidade, como Osónoba, e nas suas moedas surgia com o nome abreviado OSVNBA] em Estoi. Nos séculos II e III era a sede de um episcopado e a cidade mais importante do Algarve. Vê-se ainda um balneário, as piscinas forradas de mosaico lindo e bem conservado, compartimentos para os banhistas, etc…

Voltámos para Faro e no Nash partimos para Lisboa. Passámos por Almodôvar, Castro Verde e Aljustrel. No caminho há uma reta estupenda de uns 13 km. de comprimento.

Em Aljustrel um garoto atira uma pedra ao carro. O Alex estaca o carro e corre a toda a brida atrás do miúdo que tremia de medo; deu-lhe uns puxões de orelha e voltou contente consigo mesmo. Entre Monte do Velhos e Ferreira metemos novamente por caminho alentejano. Numa rampazinha vimos um charco: ao meio coberto e do lado direito cheio de lama. Está claro que se optou pela lama e … pflash!

Ficámos enterrados! O Víctor saiu e foi ver se arranjava uma junta de bois, mas, entretanto, passaram uns camponeses com um burro a quem nós pedimos, eu e o Alex, para nos ajudarem.

Por fim um deles tinha uma corda que se amarrou ao para-choques da frente e com a ajuda do motor lá se tirou o carro. Começámos depois a tocar a buzina para chamar o Víctor. Felizmente ouviu o sinal e veio-se embora antes que voltasse o lavrador a quem tinha pedido a junta de bois e que esperava alguns escuditos!

 

Saímos de Ferreira às 7 e já era noite quando passámos pelo Torrão e por Alcácer do Sal. `entrada em Setúbal uns soldados pediram-nos o bilhete de identidade que tínhamos em ordem. Mais adiante outros soldados armadíssimos e com uma metralhadora no meio da estrada obrigaram-nos a parar para revistar o carro! De qualquer coisa se estava à espera!

Chegámos a Cacilhas pelas 9 e 1/2. Em casa fizemos irrupção entre e reunião familiar habitual de Domingo. A nossa chegada desorganizou a marcha dos jogos. Jantámos e em seguida começámos a contar a nossa viagem.