Viagem nas férias da Páscoa -1932

Passeio à Serra da Estrela

nas férias da Páscoa

de 1932

de automóvel

“Com pormenores”

Lisboa, Novembro de 1932

Já desde o Natal que a ideia dum passeio à Serra da Estrela andava pairando. Mas não tínhamos ainda resolvido se seria “camping” ou doutra forma. Por fim pôs-se de parte essa ideia porque tinha caído neve havia pouco tempo e só esquimós aguentariam o frio.

Depois de tudo combinado, um belo dia o Rui Fürstenau trouxe uma notícia genialíssima: o pai emprestava o Ford!

Esperámos pacientemente pelo fim do período e logo no 2º dia de férias, 17 de Março, uma quinta-feira, partiu a caravana com belos projetos alpinísticos e esportivos!

Juntámo-nos todos em casa do Rui Fürstenau às 8 da manhã; os habitantes do Ford eram: Jorge Rosa d’Oliveira, João Chaves, Rui Seruya, Rui Fürstenau, eu de nicker-bokers [Knickerbockers are a form of baggy-kneed breeches, particularly popular in the early 20th-century], e o chauffeur, Gouveia. Ainda por cima toda a nossa bagagem. Mas o valentão do Ford ainda mais aguentava se fosse preciso! E não havia carro que não ultrapassássemos.

Ao princípio, como o Rui II (numerámo-los para não confundir!) não conhecia ninguém ainda, o ambiente estava de certo modo monótono mas dali a pouco começou-se a conversar animadamente.

Atravessámos num instante S.ta Iria, Alverca, Alhandra, Vila Franca às 9,29 h., Carregado, Alenquer, Azambuja, Cartaxo e em Santarém parámos 15 minutos para ir ao correio e visitar as Portas do Sol, célebres pela sua linda vista sobre o Vale do Tejo.

Pusemo-nos de novo em marcha e depois de Torres Novas parámos em Tomar onde resolvemos almoçar; eram 12,30 e os estômagos não podiam aguentar outra caminhada! Ingerimos tudo o que veio à mesa e toca a andar, com a perspetiva duma boa etapa atá à Covilhã! Fizemos uma boa média; o conta quilómetros estava sempre em 125 km/h, mas era desarranjo!

Atravessámos Cernache de Bonjardim e a cada passo encontrávamos árvores carregadas de mimosas em flor, que dava um aspecto lindo à estrada! Na Sertã, já na Beira Baixa, apeámo-nos na ponte sobre o rio do mesmo nome, para tirar uma fotografia.

Mais ao norte apeámo-nos outra vez, agora para esticar os pernis já cansados de estarem sempre na mesma posição. Quando estávamos distraídos o Gouveia atirou um tiro de revolver para o ar, que nos assustou algo! Podia ser um ataque de bandidos. Depois deste breve exercício pernal, pôs-se a caravana outra vez a caminho.

Passámos por Proença-a-Nova e em Castelo Branco o carro queixou-se que tinha sede!… Também tinha direito! Um Ford também precisa de gasolina!…

Demos um passeiozito pala “cidade” e a única coisa curiosa que notei foi a quantidade de lojas de coiros com selins e albardas à porta!

À partida o Jorge amarrou o cachecol do João nas traseiras do carro à laia de bandeira, mas uma chuva inclemente encharcou-o! Eram 5,40.

Durante o caminho a brincadeira alastrou a ponto de uma boina ir parar à estrada e termos de voltar uns 500 metros atrás buscá-la!

Depois de Alpedrinha começaram os vestígios da serra: a subida. Entrámos no Fundão com nevoeiro e chuva. Maus presságios de tempo, o que nos desconsolou imenso pensando que a neve dos cumes se estava derretendo….

Entrámos na Covilhã às 7,05. O Rui I tinha uma recomendação para um Sr. Mourão, ainda parente muito afastado. Indagámos onde morava, mas não estava. Encontrámo-lo a “flanear” na praça e sempre a chover levou-nos ao Hotel Covilhanense, o melhor do sítio.

Rebentou logo grande discussão, barulhenta, mas sempre amena, acerca do preço. Falámos em crise, etc. e lá chegámos a um acordo com o homenzinho, o Sr. Luciano Gaspar, o hoteleiro mais influente da cidade.

Primeiro de tudo quisemos notícias da neve: ainda havia muita! Planeámos logo arranjar skis e partir para a serra de manhã cedo. Jantámos opiparamente (não em qualidade, mas sim em quantidade!) e à noite saímos. Encontrámos o Mourão que nos disse haver lá em cima um hotelzito espeluncoide nas Penhas da Saúde.

Ficou logo decidido, sem pensar na espelunquisse ir para lá porque isso poupava-nos subir à serra todos os dias.

Dormimos um sono pacífico e acordámos com um dia lindo. Almoçámos e fomos à vila. Escrevemos postais e “flanámos” à espera das 9 horas, hora a que abria a Comissão de Iniciativa. Quando vimos as portas abertas fizemos irrupção, mas batemos com o nariz na porta: o empregado-mor não tinha chegado. E esperámos por Sua Excelência uma hora e meia! É tudo assim em Portugal!

Depois de grandes gesticulações lá conseguimos extorquir 3 pares de skis, e, assim apetrechados começámos a “ascender” no Ford. Só vimos neve lá no topo já perto do “hotel”. A primeira impressão foi duma refinada espelunca, fria e de madeira. Mas ficámos.

Metemo-nos no carro outra vez e fomos para um sítio com bastante neve para skiar. À volta tivemos que nos descalçar porque os pés boiavam dentro das botas, que não tinham sido ensebadas! Viemos de pés nus e assim almoçámos enquanto as meias e botas secavam penduradas por cima dum braseiro.

A comida deixava a desejar e como o preço não simpatizava nada com as nossas algibeiras, chamámos o dono e o Jorge pregou-lhe uma tremenda “descasca”. O homenzinho não engoliu de boa vontade as palavras um pouco agressivas do Jorge, e para nos convencer que o hotel era ótimo mostrou-nos o bilhete de visita do D. José Manuel…, pessoa da alta sociedade, que tinha lá passado uns dias. Por fim fizemos as pazes e chegámos a um acordo.

Nessa tarde o João e o Rui II foram à Covilhã. Nós três pegámos nos skis às costas e depois de meia-hora de andar e atravessar uma planície cheia de riachos de neve derretida,

chegámos a uma rampa ótima de 50 metros, que tinha pelo menos uns 40 cm de neve. Fartámo-nos de skiar e cair! 

Voltámos já de noite e por sorte que havia um luar magnífico porque com os riachos e sem ver o hotel era o diabo!

Jantámos e à noite o Rui I lembrou-se de mandar um telegrama ao Mr. Kroman, grande amigo dele e diretor do Hotel das Águas Radium, em Caria.

Deitámo-nos com uma temperatura de 3,5 º C. dentro de casa! Está claro que pedimos mais cobertores!

No dia seguinte acordámos “fits” para tudo o que viesse. Era sábado, 19. Tínhamos dormido em dois quartos, um com 3 e o outro com 2 camas.

Depois de prontos, almoçados e lavados encerámos os skis com parafina que eles tinham comprado na Covilhã. Sem isso não se pode deslizar bem… e cai-se muito mais! Saímos do hotel às 9,30 h. com um dia lindo e fomos para o sítio que tínhamos desencantado. Levávamos além dos skis um “toboggan” ou melhor uma “luge” que nos custou bastante a transportar, mas lá o conseguimos!

Rui I galgando o “trampolim”

Brincámos com os skis toda a manhã, mas para o fim já ia melhor.

Chegámos a fazer um “trampolim” de neve e demos alguns saltos estéticos e menos mal!

Eu , pela neve abaixo a toda a velocidade!
Rui II depois de um “raid” em toboggan

À volta, quando chegámos perto do rio em frente do hotel, o Rui II teimoso quis vir por outro sítio; primeiro enterrou-se até ao peito num buraco coberto de neve traiçoeira, e cheio de água. Nós atravessámos o rio sãos e salvos, saltando por cima dumas pedras, mas ele foi ter a um sítio muito mais difícil. Esperámos que ele aparecesse na outra margem e fomos socorrê-lo. Esteve imenso tempo sem se decidir, mas como a hora do almoço se ia aproximando encheu-se de coragem e deu o salto, mas caiu com um pé dentro de água.

Preparativos para a arrojadíssima travessia

Quando chegámos ao hotel encontrámos na casa de jantar uma mesa cheia de excursionistas vindos numa camionete. Os 2 Ruis, comilões mores, fizeram um concurso para ver quem comia mais, mas o júri não se pronunciou acerca do vencedor!

O salto “arriscadíssimo”

À tarde Jorge e Rui I foram siar para uns campos longínquos. Nós demos um passeio pelo rio abaixo. À tardinha chegou um casal de dinamarqueses no seu carro com skis e muito bem vestidos, ski-mente falando.

 

Depois do jantar fizemos uma partida de bridge, todos cobertos até ao pescoço; estava um frio de rachar! Dormimos de camisola e meias.

A catarata onde queríamos ducharmo-nos!

No dia seguinte, domingo, João e 2 Ruis foram de manhã à Covilhã. Chegaram nessa manhã o José Olaia e uns amigos para fazer sei; eu e o Jorge fomos com eles até maio caminho da tal rampa, para lhes mostrar o sítio e recomendámos-lhes que andassem no toboggan que lá tínhamos deixado mas que depois o trouxessem. Depois demos um pacato passeio e tirámos uns snaps e à volta quando atravessámos o rio planeámos um belo banho naquelas águas límpidas, para lavagem, mas abandonámos logo: a água devia estar pouco acima de 0º C.!

Depois do almoço começaram a chegar os “turistas” em grande quantidade. Os homens da Comissão perderam-nos os skis e nunca mais os vimos. Dali a pouco chegou o Sr. Kromann no carro do Sr. Tavares de Melo, com ele e o filho, todos muito simpáticos. Demos um passeio a pé pela estrada bombardeando os automóveis com bolas de neve! Tanto fizemos que desceu um homem dum dos carros e veio ter connosco furioso, pedindo satisfações por lhe termos quase partido os óculos!

No fim da estrada, no sítio onde tínhamos skiado pela primeira vez, encontrámos 2 rapazes da Covilhã com skis. Fizemos rapidamente conhecimento e levaram-nos para uma encosta esplêndida onde nos fartámos de skiar. Um deles era um industrial da Covilhã e à volta a conversar, fartou-se de dizer mal do Mourão, da Comissão de Iniciativa, etc… Ofereceu-nos mostrar-nos a sua fábrica de lanifícios no dia seguinte às 10 horas… mas não fomos! Devia ter bebido um cálice de álcool a mais, com certeza!

Quando Tavares de Melo e Kromann partiram combinámos ir lá jantar e dormir no dia seguinte, ao hotel da Águas Radium.

À noite jogámos bridge e quando nos fomos deitar houve batalha renhida! Eu e João que dormíamos noutro quarto conseguimos fechá-los à chave, mas tendo eles a nossa chave. Deitámo-nos pacificamente pensando que eles nunca sairiam de lá, e eles barricadaram-se com as camas de encontro à porta.

Adormecemos e dormíamos serenamente quando por volta da meia-noite entram eles três pelo nosso quarto dentro, em furacão, escangalham a cama do João e tiram-lhe o cobertor, e vão-se embora, satisfeitos com o saque e fechando-nos à chave! Estava um frio de rachar e o pobre João dormiu bastante desconfortavelmente! Eles tinham arrombado a porta!…

De manhã o combate continuou. Os três já vestidos foram para o jardim e nós do quarto atirávamos copos de água e recebíamos de vez em quando pedaços de gelo. Por fim fez-se a paz e partimos, depois de liquidadas as contas, às 10,30h.  Desta vez a caravana descia a serra. Na Covilhã passámos num relâmpago na praça com medo que nos vissem da comissão: não tínhamos pago os skis! Nem queríamos pagar! Fomos a casa do Mourão que é um belo edifício com uma linda vista. Almoçámos no restaurante Aliança com ginjinha.

Seguindo a recomendação do Mourão fomos ver a fábrica da “Empresa de Transformação de Lãs”. A Covilhã é um grande centro de lanifícios. O Rui II parecia estar um tanto ou quanto drog durante toda a visita que foi muito interessante.

Partimos à 3 h. para as Águas Radium. Chegámos ao hotel, são e salvos, às 4h. Gostei logo imenso daquilo. É um casarão construído no sopá dum monte e que domina um enorme vale; tem-se uma vista soberba. Demos uma passeata até ao topo do monte. Via-se a crista da Serra da Estrela toda branca. O José Tavares de Melo chegou dali a pouco, da sua quinta que é contígua aos terrenos do hotel. Fomos para a casa de jantar onde tomámos um belo chá com ótimo “home made jam” made pelo Mr. Kromann, ou melhor Jim como nos habituámos a chamá-lo.

Visitámos depois o hotel e as instalações balneares e de engarrafamento. Quando vimos as belas banheiras o corpo não resistiu à tentação da água e pedimos ao Jim um banho para cada um antes do jantar. Enquanto a água corria fomos saltar ao eixo no terraço. Jantámos opiparamente uma sopa muito boa e depois umas carnes frias com salada tudo isto regado com um belíssimo vinho branco picante e champanhe dos Tavares de Melo. Ofereceu-nos para que passássemos pela quinta no dia seguinte de manhã e levarmos umas garrafas.

Depois do jantar o Jim ofereceu a cada um de nós uma pedra de urânio, donde se extrai o rádio, e muito abundante naquela região.

Rui II riu todo o jantar à “pata choca” e o Jorge também mostrou certos vestígios de “tocadice”, que depois se desenvolveram algo! 

Jogou-se o Rummy, jogo parecido com o Conn-Can, e de certo modo “chato”; à meia-noite Tavares de Melo foi-se embora. Nós subimos as escadas pacatamente mas quando chegámos ao patamar do 1º andar Jorge e Rui II puseram-se a dançar diante do Jim. De manhã Jorge não se lembrava, prova evidente dos fortes efeitos do belíssimo vinho branco!…

Deitámo-nos pacificamente porque os quartos não comunicavam… Eu e Rui II tínhamos um belíssimo quarto com duas enormes janelas que abrimos para que o ar fresco dissipasse durante a noite as brumas alcoólicas! De manhã estava um dia soberbo, e a vista, do quarto, era linda.

Almoçámos “ogremente”, com o apetite avivado pelo ar fresco da amena aurora…!

Despedimo-nos do Jim com promessas de volta que cumprimos parcialmente. Levávamos certas saudades das Águas Radium. Como tínhamos prometido fomos à quinta do Tavares de Melo e valeu imenso a pena.

Entrámos pela “herdade” dentro ao som da buzina fortíssima do Ford que afugentava as galinhas e pintos! Pai e filho vieram ter connosco e foram mostrar-nos a casa e a quinta.

Além da casa há uma aldeia dentro da propriedade para o caseiro e trabalhadores, com caixa de correio própria, etc. É o morgado de St. Amaro e o José Tavares de Melo é conhecido no sítio por “Menino de St. Amaro”.

Como bons adeptos da “lei molhada” começámos pela adega onde provámos alguns vinhos e mandou-se engarrafar algumas garrafas para levarmos.

Vimos as máquinas agrícolas, uma delas uma semeadeira, é invenção do Sr. Tavares de Melo, pai, e fê-la na oficina que vimos a seguir e que está lindamente montada com tudo o que é preciso. Ali se fazem todos os utensílios precisos na quinta sejam de ferro, de madeira ou doutra coisa.

Depois disto fomos ver a casa. Mostraram-nos os vários quartos, etc. O pai do atual Sr. Tavares de Melo era habilidosíssimo. Vimos coisas espantosas feitas por eles: rodas dentadas, e dentro da casa uma boquilha de marfim toda trabalhada. Na casa de jantar foi inevitável o calicezito de ótima jeropiga enquanto o gramofone tocava langorosamente a “Ramona”. Tudo isto tinha um certo “cachet” rústico-civilizado, com piada. À saída vimos uma planta da propriedade que tem cerca de 1.000 hectares.

Quando nos despedimos o morgado pai mandou muitas recomendações à Avó Esther e Tia Júlia que tinha conhecido muito bem na Figueira nas eras da juventude, e com quem tinha valsado e polcado bastantes vezes.

Partimos de Sto. Amaro às 10,25. Fomos avisados que não aquecêssemos muito as garrafas do vinho espumante porque corríamos o risco de as ver explodir!

Para não voltar pelo mesmo caminho marchámos em direção à Guarda e a Coimbra. Avistámos de perto o castelo do Sabugal e passámos em frente da catedral da Guarda às 11,30. Em Oliveira do Hospital não conseguimos arranjar almoço: àquela hora só havia atum de lata e pão. Ficámos um tanto ou quanto aflitos da barriga e só às 3h. podemos acalmar o ardor fumífero em Arganil no Hotel Paço.

O Jorge com a sua estrutura de bife intrujou sublimemente o plácido dono do hotel dizendo que vinha da América onde tinha conhecido o Lindbergh e o filho, etc. O bom do homem caiu!

Partimos às 3,42h. e atravessámos Coimbra às 5,22h. Levámos uma hora até Leiria. Nas Caldas comprámos cavacas e telefonei para Lisboa a dar notícias.

Chegámos a casa às 10,30 e depois de um belíssimo abraço e xôxo no Victor que tinha chegado há uns dias, jantámos do que restou do jantar de toda a gente que tinha jantado cá nessa noite. Depois seguiu-se a narrativa da viagem e… a prova do vinho espumoso.

Assim acabava uma tournée ótima e que nunca mais esquecerei.

As conclusões práticas que tirei foram as seguintes:

  1. Já se pode viajar de automóvel em Portugal, contando que seja resistente!!
  2. Hotéis deficientes.
  3. Falta de comodidades turísticas.
  4. Que o Ford é um carro formidável. Tinha 50.000 Km. e aguentou sem sentir com 6 pessoas e toda a bagagem. E ainda está a andar lindamente!
  5. Que é muito agradável fazer uma digressão de automóvel nas férias, ficando-se a conhecer o país e distraindo o espírito.

Após isto dou a palavra a outra narrativa.

FIM